Dada a crescente admissão de assinaturas eletrônicas certificadas por plataformas não credenciadas pela ICP-Brasil, urge o debate acerca dos efeitos dessa nova realidade sobre o exercício da advocacia predatória.
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Por Isabela Tazinaffo Gaona, Leonardo Franco Villela e Maria Julia de Castro e Sousa
A litigância predatória tem sido um tema de relevância atual nos debates levados à apreciação do Judiciário, sendo compreendida como a provocação das instâncias decisórias mediante o ajuizamento de demandas massificadas com elementos de abusividade e\ou fraude.
As demandas predatórias resultam em várias consequências, tanto no âmbito econômico quanto jurídico, como o crescimento acentuado do volume de processos judiciais e a morosidade na sua tramitação.
Além disso, a atuação predatória pode caracterizar a violação do ambiente concorrencial, na tentativa de monopolizar o mercado jurídico, eliminando, de forma desleal, a concorrência entre os profissionais operadores do Direito.
Nesse ínterim, como estratégia de combate ao crescimento da advocacia predatória, foram atribuídos aos órgãos do Judiciário e seus centros de inteligência a regulamentação e a adoção de medidas preventivas, entre as quais destaca-se a recomendação 159/24, editada pelo CNJ, que aborda medidas de identificação, tratamento e prevenção da litigância predatória.
A recomendação lista exemplificativamente as condutas processuais potencialmente abusivas, entre elas, a apresentação de procurações mediante assinatura eletrônica não qualificada e lançada sem o emprego de certificado digital de padrão ICP-Brasil.
Até então, a lei 11.419 de 2006 representava um marco importante na modernização do sistema judiciário brasileiro, ao dispor sobre a informatização do processo judicial. Dentre suas inovações, o uso de certificado digital para autenticação de assinaturas foi o destaque, visando a garantia da segurança e integridade das informações.
Inicialmente, a medida foi vista com bons olhos, sendo, até então, a solução para assegurar a veracidade das interações digitais no processo, acabando com uma série de burocracias pretéritas. Embora inovadora na época, esta diligência refletia a necessidade crescente de adaptação do Judiciário ao avanço da tecnologia, sendo uma das soluções pioneiras para a transição de um modelo iminentemente físico para o digital.
No entanto, com o desenfreado avanço tecnológico, surgiram diversos métodos para a assinatura digital, cada vez mais sofisticados e acessíveis. Ferramentas como assinatura biométrica, autenticação por meio de dispositivos móveis, assinatura de próprio punho na tela de um dispositivo, entre outros, trouxeram flexibilidade para advogados – principalmente aqueles inclinados à litigância predatória – e dificultou o monitoramento da veracidade das assinaturas.
Assim, o controle dos diversos tipos de assinaturas digitais representa um desafio significativo para os tribunais, que, diante do número crescente de soluções tecnológicas, não dispõem de ferramentas hábeis à verificação da integridade das manifestações processuais.
Neste sentido, a observância das medidas implementadas pela Recomendação 159/2024 é fundamental ao combate da litigância predatória, sobretudo no que tange à necessidade de utilização de certificados digitais de padrão ICP-Brasil como condição de admissibilidade às procurações eletrônicas.
A título exemplificativo, um estudo desenvolvido na nota técnica 1/22 do Centro de Inteligência de Minas Gerais, calcula que no ano de 2020 o prejuízo financeiro decorrente de práticas abusivas, apenas na seara do Direito do Consumidor, superou a casa dos 10 bilhões de reais.
Desta forma, não obstante representem, de fato, um marco tecnológico rumo à flexibilização do formalismo usualmente atribuído ao exercício da advocacia, a utilização de ferramentas digitais demandam especial cautela, não só por parte dos operadores do Direito, mas também, e sobretudo, das instâncias decisórias do Judiciário, a fim de impedir que, sob o manto do direito de ação e da máxima constitucional do acesso à Justiça, o discurso da praticidade seja condescendente com condutas alheias à ética profissional, como aquelas relacionadas à advocacia predatória.
Logo, chama a atenção a crescente identificada na admissão judicial de assinaturas eletrônicas certificadas por plataformas privadas não credenciadas na ICP-Brasil – Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira. Isto porque, uma vez destituídas do caráter autárquico, característico ao ITI – Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, responsável pela execução de políticas públicas de certificação digital, as entidades certificadoras privadas, indiscutivelmente voltadas à atividade lucrativa, não dispõem da mesma estrutura de auditoria e fiscalização as entidades públicas.
Tais circunstâncias podem instrumentalizar o exercício temerário da advocacia, principalmente por meio da assinatura eletrônica de procurações em massa, que acompanham o ajuizamento de centenas, ou mesmo milhares, de petições padronizadas, patrocinadas por causídico único, e, geralmente, elaboradas em nome de requerentes invisíveis que, muitas vezes, são vítimas de fraude, desconhecendo completamente o processamento de qualquer demanda.
À vista disso, muito embora haja precedentes recentes no sentido de que a existência de um sistema robusto de certificação público, como a ICP-Brasil, não possa impedir a utilização de outros meios de validação jurídica de assinaturas eletrônicas (vide REsp 2159442 – PR (24/0267355-0), conforme estabelecido pela resolução 159/24, já mencionada, bem como pelo parágrafo 2º do art. 10 da MP 2200/01, a relevância do debate reflete não somente sobre questões éticas, mas também sobre o congestionamento e a efetividade do Judiciário.
Portanto, a exigência de aperfeiçoamento de ações combativas à litigância predatória, tais quais as já praticadas pelo Numopede – Núcleo de Monitoramento de Perfis de Demandas se contrapõe à pretendida flexibilização dos meios eletrônicos úteis à instrumentalização da advocacia temerária; contraposição esta, inclusive, amparada pelo texto da lei 14.063/20, que em seu art. 10, paragrafo segundo, inciso I, proíbe a aplicação de suas disposições (voltadas ao uso de assinaturas eletrônicas) no âmbito judicial, aspecto que coloca em cheque a validade indiscriminada do método.
Sendo assim, entre a manutenção de um formalismo enrijecido e a subversão absoluta do compromisso ético da advocacia, ceder às múltiplas plataformas privadas o gerenciamento irrestrito da certificação digital de assinaturas eletrônicas, capazes de viabilizar o exercício postulatório, não parece representar a melhor saída à necessidade de adaptação do universo jurídico à evolução da tecnologia.
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1 Advocacia predatória e a necessidade de combate a essa prática. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2024.
2 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Recomendação Nº 159, de 23 de outubro de 2024. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original2331012024102367198735c5fef.pdf. Acesso em: 07 dez. 2024.
3 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Rede de Informações sobre a Litigância Predatória. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-eacoes/litigancia-predatoria/. Acesso em: 07 dez. 2024.
4 L14063. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2024.
5 2200-2. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2024.
6 Para o STJ, credenciamento na ICP-Brasil não é indispensável. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2024.
Isabela Tazinaffo Gaona
Advogada no escritório Brasil Salomão e Matthes advocacia. Pós-graduanda em Direito Processual Civil pela PUCRS. Graduada pela Faculdade de Direito de Franca
Leonardo Franco Villela
Advogado no escritório Brasil Salomão e Matthes advocacia. Pós-graduando em Direito de Família, Sucessões e Direito Notarial. Graduado pela Faculdade de Direito de Franca
Maria Julia de Castro e Sousa
Advogada no escritório Brasil Salomão e Matthes advocacia. Mestranda em Direito pela UNESP/Franca. Graduada pela Faculdade de Direito de Franca
Fonte: Migalhas