Análise técnica da validade jurídica das assinaturas eletrônicas no Brasil, destacando diferenças, legislação, desafios nos tribunais e recomendações práticas para advogados.

Por Marco Aurelio Fernandes dos Santos
Introdução
A crescente digitalização dos processos judiciais e das relações contratuais no Brasil impulsionou a adoção de novas tecnologias para a validação de documentos. Nesse contexto, as assinaturas eletrônicas e digitais surgem como ferramentas essenciais para a advocacia moderna, prometendo celeridade, segurança e eficiência. Contudo, a aplicação prática dessas tecnologias tem gerado debates acalorados, especialmente no que tange à aceitação de documentos assinados por meio de plataformas governamentais, como o gov.br, pelos tribunais pátrios.
Este artigo técnico visa aprofundar o conhecimento dos advogados sobre o tema, desmistificando os conceitos de assinatura eletrônica e digital, analisando o arcabouço legal que as rege e, principalmente, investigando as razões pelas quais a validade de certas assinaturas eletrônicas tem sido questionada no âmbito do Poder Judiciário. A compreensão clara das nuances técnicas e jurídicas é fundamental para garantir a segurança dos atos processuais e a defesa eficaz dos interesses dos clientes na era digital.
1. Assinatura eletrônica e assinatura digital: Conceitos e diferenças
Para compreender a discussão em torno da validade das assinaturas no contexto jurídico, é imperativo distinguir entre os conceitos de assinatura eletrônica e assinatura digital, termos frequentemente utilizados de forma intercambiável, mas que possuem significados e implicações técnicas e jurídicas distintas. A legislação brasileira, em especial a MP 2.200-2/011 e a lei 14.063/202, estabelece as bases para essa diferenciação.
1.1. Assinatura eletrônica
A assinatura eletrônica é um conceito amplo que abrange qualquer forma de identificação eletrônica de uma pessoa natural ou jurídica que se liga ou está logicamente associada a outros dados em formato eletrônico e que são utilizados pelo signatário para assinar2. Ela pode ser realizada por diversos meios, como senhas, biometria, tokens, SMS, geolocalização, entre outros. A validade jurídica da assinatura eletrônica no Brasil é reconhecida desde a edição da MP 2.200-2/011, que instituiu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) e permitiu a utilização de outros meios de comprovação da autoria e integridade de documentos eletrônicos, desde que admitidos pelas partes como válidos ou aceitos pela pessoa a quem for oposto o documento.
A lei 14.063/202 classifica as assinaturas eletrônicas em três tipos, com diferentes níveis de segurança e confiabilidade:
- Assinatura eletrônica simples: Permite identificar o signatário e anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário. É admitida em interações com entes públicos de menor impacto e que não envolvam informações protegidas por grau de sigilo.
- Assinatura eletrônica avançada: Utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento. Possui características que a associam ao signatário de maneira unívoca, utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica sob controle exclusivo do signatário e permite a detecção de qualquer modificação posterior nos dados associados. Pode ser admitida em diversas interações, inclusive no registro de atos perante as juntas comerciais.
- Assinatura eletrônica qualificada: É a que utiliza certificado digital emitido por uma AC – Autoridade Certificadora credenciada na ICP-Brasil, nos termos do § 1º do art. 10 da MP 2.200-2/011. Possui o mais elevado nível de confiabilidade e é admitida em qualquer interação eletrônica com ente público, independentemente de cadastramento prévio. Seu uso é obrigatório em atos assinados por chefes de Poder, ministros de Estado, titulares de Poder ou de órgão constitucionalmente autônomo de ente federativo, emissões de notas fiscais eletrônicas (com exceções) e atos de transferência e registro de bens imóveis, entre outras hipóteses previstas em lei.
1.2. Assinatura digital
A assinatura digital é uma espécie do gênero assinatura eletrônica. Sua principal característica é o uso de operações matemáticas baseadas em criptografia assimétrica, que garantem a autenticidade, integridade e não-repúdio do documento eletrônico3. Para que uma assinatura seja considerada digital, ela deve ser realizada com um certificado digital emitido por uma AC – Autoridade Certificadora credenciada na ICP-Brasil. Esse certificado contém um par de chaves criptográficas (uma pública e uma privada) que asseguram a identidade do signatário e a inviolabilidade do documento. Qualquer alteração no documento após a aposição da assinatura digital invalida-a automaticamente, tornando a possibilidade de fraude quase inexistente3.
1.3. Diferenças fundamentais
A principal diferença entre assinatura eletrônica e digital reside no nível de segurança e na tecnologia empregada. Enquanto a assinatura eletrônica é um conceito abrangente que engloba diversas formas de validação, a assinatura digital é um tipo específico de assinatura eletrônica que utiliza criptografia e certificados digitais emitidos pela ICP-Brasil, conferindo-lhe um grau de confiabilidade superior. A tabela a seguir resume as principais distinções:
2. A assinatura gov.br e os desafios de aceitação nos Tribunais
A plataforma gov.br, desenvolvida pelo governo Federal, oferece aos cidadãos a possibilidade de realizar assinaturas eletrônicas em documentos digitais. Embora seja uma ferramenta que visa desburocratizar e agilizar processos, sua aceitação irrestrita no âmbito judicial tem sido objeto de controvérsia e decisões que geram insegurança jurídica para advogados e seus clientes.
2.1. Níveis de assinatura no gov.br
O gov.br, em conformidade com a lei 14.063/202, oferece diferentes níveis de confiabilidade para as assinaturas eletrônicas, vinculados ao nível de segurança da conta do usuário (bronze, prata ou ouro):
– Assinatura simples: Geralmente associada a contas de nível bronze, utilizada para interações de menor impacto.
– Assinatura avançada: Associada a contas de nível prata, permite a comprovação da autoria e integridade do documento, mas sem a exigência de um certificado digital ICP-Brasil.
– Assinatura qualificada: Associada a contas de nível ouro, utiliza certificado digital ICP-Brasil, conferindo o mais alto nível de segurança e presunção de veracidade.
2.2. Pontos positivos e negativos da assinatura gov.br
Pontos positivos:
– Acessibilidade e facilidade de uso: A plataforma gov.br é de fácil acesso e utilização, permitindo que um grande número de cidadãos realize assinaturas eletrônicas sem a necessidade de conhecimentos técnicos aprofundados ou aquisição de certificados digitais externos.
– Redução de custos e burocracia: Elimina a necessidade de impressão, reconhecimento de firma em cartório e envio físico de documentos, gerando economia de tempo e recursos.
– Validade legal para interações públicas: A lei 14.063/202 garante a validade da assinatura eletrônica qualificada em qualquer interação eletrônica com entes públicos, e a simples e avançada em interações de menor impacto.
Pontos negativos e razões para a não aceitação em Tribunais:
Apesar dos benefícios, a assinatura gov.br, especialmente em seus níveis simples e avançado, tem enfrentado resistência em alguns tribunais, principalmente em contextos que exigem maior robustez probatória ou em interações privadas. As principais razões para essa não aceitação incluem:
– Falta de certificado digital ICP-Brasil (para assinaturas simples e avançadas): A MP 2.200-2/011 estabelece que documentos eletrônicos produzidos com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil presumem-se verdadeiros em relação aos signatários. As assinaturas simples e avançadas do gov.br, por não utilizarem necessariamente um certificado ICP-Brasil, podem não gozar da mesma presunção de veracidade, exigindo prova adicional de sua autenticidade e integridade em caso de contestação. O artigo4 destaca que a assinatura eletrônica qualificada, embora válida para interações com entes públicos, deve ser analisada criticamente em contextos privados.
– Inconsistências de interpretação e jurisprudência divergente: A legislação brasileira, embora avance na regulamentação das assinaturas eletrônicas, ainda carece de clareza em alguns pontos, especialmente no que tange à sua aplicação em atos processuais e contratos entre particulares. Decisões judiciais e administrativas têm considerado a assinatura eletrônica do gov.br inadequada ou insuficiente para determinados atos. Um exemplo notório é a decisão do CNJ que considerou a assinatura do gov.br inválida para autorizações de viagem de menores5. Outro caso relevante é a decisão da Jucemat – Junta Comercial de Mato Grosso do Sul que deixou de aceitar a assinatura digital via gov.br devido à ocorrência de fraudes4.
– Risco de fraudes e insegurança jurídica: Embora a assinatura eletrônica ofereça garantias de integridade, a ausência de um certificado ICP-Brasil em alguns níveis da assinatura gov.br pode aumentar o risco de fraudes, como evidenciado pela Jucemat. Essa preocupação com a segurança jurídica leva alguns tribunais a exigir formas de autenticação mais robustas, como o reconhecimento de firma em cartório ou o uso de certificados digitais ICP-Brasil.
– Restrição de aplicação do decreto 10.543/20: O decreto 10.543/20, que regulamenta o uso de assinaturas eletrônicas no âmbito da Administração Pública Federal, restringe expressamente sua aplicação às interações com entes públicos Federais4. Isso significa que a utilização da assinatura gov.br para contratos entre particulares ou para procurações destinadas a processos judiciais não encontra respaldo normativo direto, exceto quando formalmente aceitas pelas partes ou reconhecidas por outros meios legais. Essa limitação legal pode fazer com que um contrato entre particulares assinado via gov.br não seja considerado título executivo, e sua força probatória ou executividade possa ser contestada.
– Exigências processuais específicas: No campo do direito processual, a assinatura eletrônica precisa estar em conformidade com as exigências estabelecidas pelo CPC e outras normas regulatórias. A jurisprudência, em alguns casos, já questionou a adequação da assinatura eletrônica emitida pelo gov.br para a prática de atos processuais, principalmente quando se trata de procurações4.
3. Implicações jurídicas para advogados e recomendações
Diante do cenário de incertezas e da jurisprudência ainda em construção, os advogados devem adotar uma postura cautelosa e estratégica ao lidar com documentos assinados eletronicamente, especialmente aqueles gerados via gov.br. A segurança jurídica dos atos processuais e contratuais depende de uma compreensão aprofundada das nuances técnicas e legais.
3.1. Análise crítica da validade e força probatória
É fundamental que o advogado avalie o nível de confiabilidade da assinatura eletrônica utilizada em cada documento. Para documentos que exigem alta segurança jurídica, como procurações para fins judiciais, contratos de alto valor ou atos que envolvam transferência de bens imóveis, a assinatura eletrônica qualificada (com certificado digital ICP-Brasil) é a mais recomendada e, em muitos casos, obrigatória por lei2.
Quando se deparar com documentos assinados eletronicamente por meio de plataformas como o gov.br, especialmente com assinaturas simples ou avançadas, o advogado deve considerar a possibilidade de contestação da validade ou da força probatória. Nesses casos, pode ser prudente buscar meios adicionais de autenticação, como o reconhecimento de firma em cartório ou a utilização de outras tecnologias que garantam a eficácia legal do documento.
3.2. A importância da ICP-Brasil
A ICP-Brasil – Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira desempenha um papel central na garantia da validade jurídica das assinaturas digitais no país. Os certificados digitais emitidos no padrão ICP-Brasil conferem presunção de veracidade aos documentos eletrônicos, o que simplifica a comprovação de sua autenticidade e integridade em juízo1. Advogados devem orientar seus clientes a utilizar certificados digitais ICP-Brasil sempre que a segurança jurídica for um fator crítico.
3.3. Orientações para a prática jurídica
– – Educação continuada: Mantenha-se atualizado sobre as evoluções legislativas e jurisprudenciais relacionadas às assinaturas eletrônicas e digitais. A tecnologia e o Direito Digital estão em constante transformação, e o conhecimento é a principal ferramenta para mitigar riscos.
– Diligência na análise de documentos: Ao receber documentos eletrônicos, verifique sempre o tipo de assinatura utilizada e o nível de confiabilidade. Em caso de dúvida, solicite informações adicionais ou a apresentação de documentos com maior grau de segurança.
– Prevenção de litígios: Em transações privadas, especialmente aquelas que não envolvem entes públicos, oriente seus clientes a formalizar os atos por meio de assinaturas eletrônicas qualificadas ou, se necessário, por meio de instrumentos públicos ou com reconhecimento de firma, a fim de evitar futuras contestações sobre a validade do documento.
– Argumentação jurídica: Em casos de contestação da validade de assinaturas eletrônicas, o advogado deve estar preparado para argumentar sobre a legislação aplicável (MP 2.200-2/01 e lei 14.063/20), a tecnologia empregada e a presunção de veracidade, quando cabível. É crucial demonstrar que, mesmo sem um certificado ICP-Brasil, o documento atende aos requisitos de autoria e integridade.
Conclusão
A digitalização dos processos e a crescente utilização de assinaturas eletrônicas representam um avanço inegável para a sociedade e para o sistema jurídico brasileiro. No entanto, a complexidade tecnológica e a diversidade de interpretações legais exigem dos advogados uma compreensão aprofundada sobre o tema.
A distinção entre assinatura eletrônica e digital, os diferentes níveis de confiabilidade e a importância da ICP-Brasil são conhecimentos essenciais para a prática jurídica na era digital. A resistência de alguns tribunais em aceitar documentos assinados via gov.br, especialmente em seus níveis mais simples, não invalida a tecnologia em si, mas ressalta a necessidade de cautela e de uma análise criteriosa de cada caso.
Ao adotar as recomendações apresentadas neste artigo, os advogados estarão mais bem preparados para navegar nesse cenário complexo, garantindo a segurança jurídica de seus clientes e contribuindo para a evolução do Direito no ambiente digital.
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1 Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/antigas_2001/2200-2.htm
2 Lei nº 14.063, de 23 de setembro de 2020. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14063.htm
3 Serasa Experian. Assinatura Digital e Eletrônica: você compreende a diferença? Disponível em: https://www.serasaexperian.com.br/blog-pme/assinatura-digital-e-eletronica-voce-compreende-a-diferenca/
4 Desafios e limitações da assinatura do Gov.br. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-mai-14/transformacao-digital-nos-servicos-publicos-desafios-e-limitacoes-da-assinatura-do-gov-br/
5 TJRS. CNJ decide que assinatura do Gov.br não é válida para autorização de viagens. Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/novo/cij/noticias/cnj-decide-que-assinatura-do-gov-br-nao-e-valida-para-autorizacao-de-viagens-pais-e-responsaveis-devem-atentar-para-regras-de-reconhecimento-de-firma-em-cartorio/
Marco Aurelio Fernandes dos Santos
Fundador da M A Segurança Digital e Palestrante. Formado em Segurança Pública e Direito, com especialização em Perícia Digital Forense, atua em Direito Digital, Segurança da Informação e investigações
Fonte: Migalhas