O enfrentamento das desigualdades pode ser menos caro, doloroso e conflitivo do que se imaginava
Por Francisco Gaetani e Virgilio Almeida
Há em vários países uma discussão em andamento, que se denomina: “the great reset’’. Ou melhor, um grande reinício. No contexto brasileiro, podemos nos perguntar: 1- o que seria um novo recomeço? e 2- quais os desafios e oportunidades se apresentam para esse novo reinício?
Com o avanço da covid-19 no Brasil, implementou-se o distanciamento social e tudo se tornou remoto – não por decreto, mas por pavor e necessidade. As discussões sobre a legitimidade e a legalidade destas mudanças virão a posteriori. Mas uma série de irreversibilidades já foram deflagradas. O Congresso funciona virtualmente – e intensivamente. O Judiciário se moderniza tecnologicamente a galope. O TCU já funcionava com base no trabalho remoto faz uma década.
O cenário no Executivo é heterogêneo. O Tesouro em duas semanas processou uma transição para o mundo virtual – com ganhos de qualidade e produtividade – que era impensável. A Caixa Econômica anunciou a rápida criação de 30 milhões de poupanças sociais digitais para o auxílio emergencial. Universidades estão engajadas em um processo de transformação que deve ir além da simples migração de cursos.
A Esplanada dos Ministérios funciona vazia. Na saúde, a telemedicina atropelou as ressalvas corporativas. Nos Estados e municípios o cenário ainda é misto. Mas a destinação é a mesma: rumo à vida digital, que se mostra como o principal elo entre a vida durante a pandemia e a vida que até então tínhamos como normal. A internet tornou-se a arena principal da vida de quase todos nós, em função do distanciamento social, como temos feito nas últimas semanas.
O cerne do debate sobre o “novo recomeço’’ é qual sociedade aspiramos nos tornar, isto é, qual o lugar do humano nesta nova configuração em que a tecnologia e a economia não sejam forças autônomas remodeladoras da vida em sociedade, mas subordinadas às escolhas políticas das nações.
O que está claro no novo tabuleiro global? Em primeiro lugar, ficou claro o poder das big tech: Google, Facebook, Amazon, Apple e Microsoft. Elas mantiveram a iniciativa e estão modelando os debates, sobrepondo-se a poderes nacionais. Em segundo lugar, observou-se a reação iluminista após anos de atraso e desinformação. A ciência está se impondo pela força das evidências em todos os países do mundo, com ou sem a aprovação de seus governantes e de suas máquinas publicitárias. A universalidade da razão, potencializada pelas tecnologias de comunicação em massa, assegurou sua prevalência frente à babel de sandices nacionais e paroquiais.
Novos caminhos estão se abrindo, lentamente, diante de nós, em vários níveis. Todos envolvem dimensões de nossas identidades, quer as exerçamos de forma consciente ou não. No plano individual, o distanciamento social nos devolveu a nós mesmos, ao convívio mais íntimo com nossos familiares e nos proporcionou surpresas de todos os tipos. Quem diria que entre as necessidades futuras emergentes a gestão da exposição ao convívio familiar seria uma delas. A internet já respondeu. Sites mais intimistas, digamos assim, estão se multiplicando. Psicólogas, pedagogas, nutricionistas, “personal trainers’’, terapeutas familiares e vários outros tipos de novos e velhos profissionais fazem parte do nosso convívio online, sem que tenhamos percebido quando e como decidimos isso. Aconteceu.
As artes terão um momento especial nos próximos meses. São expressões da vida que começam a ter novos espaços para se manifestarem. A economia criativa será renovada pela ótica doméstica e digital. Este é o momento onde todos damos vazão às nossas capacidades musicais, teatrais, cênicas, literárias, cinematográficas e outras. A vida pede arte, que nos humaniza e reconcilia conosco mesmos. De repente somos desenhistas, músicos, cantores, comediantes, pintores, videomakers, youtubers, fotógrafos… muitos em cima das plataformas digitais.
O avanço rumo à realidade digital se acelerou de forma tão abrupta que o mercado explodiu. Abriram-se tantas oportunidades de trabalho que ficou difícil catalogar todas as novas profissões emergentes. Junto com a mudança veio um choque na produtividade individual das pessoas que, paradoxalmente em suas casas, aprenderam rapidamente a funcionar em um patamar de eficiência impensável nas transições rumo à vida digital.
“Task shifting”, isto é, a delegação de tarefas de médicos, advogados, gestores e outros profissionais “seniores” para colaboradores deixou de ser objeto de resistência corporativa para se transformar na forma natural de lidar com uma demanda virtual explosiva e ainda pouco estruturada nos seus formatos de atendimento, monetização e monitoramento. Verificaremos extraordinários ganhos de produtividade em áreas dominadas por cartéis corporativos que simplesmente foram atropelados pela pandemia.
As soluções digitais estão mostrando que o enfrentamento das desigualdades pode ser menos caro, doloroso e conflitivo do que se imaginava. A pergunta é se queremos ser sociedades mais desiguais ou não. No Brasil a iniquidades é naturalizada e legalizada sob os mais variados mecanismos. A crise abriu uma janela para revisarmos nossas estruturas e mecanismos de redistribuição de renda e oportunidades. O SUS, a escola pública, as redes de assistência, o acesso a serviços básicos estão todos sendo revolucionados por aplicativos que barateiam e universalizam sua oferta. A tecnologia, não a política, tem gerado estas possibilidades. Mas é a política que pode consolidar estes avanços sociais. Ou não.
Francisco Gaetani é professor da EBAPE-FGV, ex-secretário executivo dos Ministérios do Meio Ambiente e Planejamento e ex-presidente da Escola Nacional de Administração Pública.
Virgilio Almeida é professor associado ao Berkman Klein Center da Universidade de Harvard, professor emérito da UFMG e ex-secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação
Fonte: Valor Econômico