A pauta do último dia 18 de março, no Supremo Tribunal Federal, incluía o julgamento de três casos sobre tributação de bens digitais: ADI 1.945, ADI 5.659 e RE 688.223. Em todos, está em debate a determinação do imposto que deve incidir sobre a comercialização de softwares (programas de computador).
Os feitos acabaram excluídos da pauta. Quando retomar os julgamentos, a Corte precisará enfrentar um dos temas mais controvertidos e importantes para definição do futuro da tributação brasileira na Era Digital. São casos diferentes, mas com um eixo central comum.
O RE 688.223, de relatoria do Min. Luiz Fux, processo-paradigma da repercussão geral, discute a incidência de ISSQN sobre contratos de licenciamento ou de cessão de programas de computador desenvolvidos para clientes de forma personalizada. A ADI 5.659, de relatoria do Min. Dias Toffoli, questiona a constitucionalidade da legislação do Estado de Minas Gerais que dá suporte à cobrança de ICMS nas operações com programas de computador. A ADI 1.945, de relatoria da Min. Cármen Lucia, em tramitação no STF desde 1999, questiona a constitucionalidade de lei do Mato Grosso que determina a incidência de ICMS “sobre operações com programas de computador – software –, ainda que realizadas por transferência eletrônica de dados”.
A despeito das diferenças de mérito e instrumento processual que os separam, os três feitos levam ao Tribunal uma perplexidade comum, a respeito do tratamento tributário que deve ser conferido aos bens digitais. Para colocar a questão de maneira muito simples, a pergunta é: afinal, devem ser considerados serviços ou mercadoria para fins fiscais no Brasil? Deve ser cobrado ICMS ou ISSQN?
O ponto de partida é, naturalmente, o texto constitucional. Em todos esses casos, a controvérsia jurídico-tributária assume estatura constitucional pela maneira como coloca em xeque os limites das competências tributárias previstas no art. 155, II, (“operações relativas à circulação de mercadorias”) e art. 156, III (“serviços de qualquer natureza”). Programas de computador são mercadorias ou são serviços? Como devem ser considerados para fins tributários?
As implicações práticas dessa classificação, do ponto de vista econômico e tributário, não são pequenas. A definição do conceito repercute na arrecadação e na carga fiscal. Mudam, e.g., o imposto (ICMS x ISSQN), o ente competente para a cobrança (Estado ou Município), a alíquota (em torno 17% ou de 2 a 5%) e o regime jurídico aplicável (não cumulativo ou cumulativo). A indefinição hoje é uma grande fonte de perplexidades e insegurança jurídica.
A rigor, esses não são os únicos casos que aguardam julgamento sobre o tema no Supremo, o que, aliás, pode ter contribuído para o adiamento dos julgamentos. Há, pelo menos, cinco feitos em tramitação no STF que envolvem a tributação dos bens digitais. A tabela abaixo aponta, de modo não exaustivo, os principais casos. A rigidez constitucional do nosso sistema tributário certamente fará com que venham muitos outros.
Caso |
Relator |
Objeto |
Tema |
Situação |
---|---|---|---|---|
ADI 1.945 |
Cármen Lucia |
Lei Estadual n. 7.098/1998 (MT) |
ICMS sobre operações com software, ainda que realizadas por transferência eletrônica de dados |
Pronta para pauta (08/06/2016) Cautelar indeferida (26/05/2010) |
ADI 5.659 |
Dias Toffoli |
Decreto n. 46.877/15 (MG) e outrosi |
Incidência do ICMS as operações com software |
Pronta para pauta (11/09/2018) |
RE 688.223 (Tema 590) |
Luiz Fux |
Item 1.05 da LC 116/2006 |
ISSQN sobre cessão ou licenciamento de software desenvolvidos para clientes de forma personalizada |
Pronto para pauta (1º/08/2016) Repercussão Geral reconhecida (20.9.2012) |
ADI 5.576 |
Roberto Barroso |
Lei 6.374/89 (SP) e outras |
Incidência do ICMS sobre as operações com software |
Conclusa ao relator (22.5.2019) |
ADI 5.958 |
Cármen Lucia |
Convênio ICMS n. 106/2017 (CONFAZ) |
Incidência do ICMS sobre operações com software |
Conclusa à relatora (13/01/2020) |
O julgamento desses processos não será a primeira oportunidade em que o Tribunal discutirá a tributação dos softwares. O STF já tangenciou o tema em, pelo menos, três oportunidades. Os precedentes do Tribunal são conhecidos, embora não ofereçam uma diretriz clara sobre a matéria.
A primeira decisão relevante foi a proferida no RE 176.626, de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence. No recurso, julgado pela Primeira Turma em 1998, a Fazenda do Estado de São Paulo insurgiu-se contra decisão do Tribunal de Justiça daquele Estado que afastou a incidência de ICMS sobre operações de licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computador. Discutia-se, no caso, o enquadramento dos programas de computador como mercadoria, para fins tributários.
O recurso da Fazenda estadual não foi provido. Mas os fundamentos da decisão até hoje influenciam a discussão do tema no Brasil. O voto do Ministro Sepúlveda Pertence afirmou a impossibilidade de tributação do licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador, pelo Estado, porém admitiu a incidência do ICMS sobre “cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo” – “software de prateleira” (off the shelf). O relator assentou ainda em seu voto, à guisa de obiter dictum:
“De fato. O comerciante que adquire exemplares para revenda, mantendo-os em estoque ou expondo-os em sua loja, não assume a condição de licenciado ou cessionário dos direitos de uso que, em consequência, não pode transferir ao comprador: sua posição, aí, é a mesma do vendedor de livros ou de discos, que não negocia com os direitos do autor, mas com o corpus mechanicum de obra intelectual que nele se materializa. Tampouco, a fortiori, a assume o consumidor final, se adquire um exemplar do programa para dar de presente a outra pessoa. E é sobre essa operação que cabe plausivelmente cogitar da incidência do imposto questionado.
A distinção é, no entanto, questão estranha ao objeto desta ação declaratória, reduzido ao licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador, bem incorpóreo sobre o qual, não se cuidando de mercadoria, efetivamente não pode incidir o ICMS; por isso, não conheço do recurso: é o meu voto.”
Controvérsia semelhante foi enfrentada no RE 199.464, de relatoria do Min. Ilmar Galvão, julgado 2.3.1999. Neste caso, também julgado pela Primeira Turma, o recurso da Fazenda do Estado de São Paulo foi provido, tomando como fundamento a orientação firmada no precedente anterior, o RE 176.626. Lê-se na ementa do segundo julgado:
“A produção em massa para comercialização e a revenda de exemplares do corpus mechanicum da obra intelectual que nele se materializa não caracterizam licenciamento ou cessão de direitos de uso da obra, mas genuínas operações de circulação de mercadorias, sujeitas ao ICMS.”
Ainda em 1999, a tributação dos softwares chegou ao Plenário do STF, no julgamento da medida cautelar na ADI 1.945. À época a relatoria era do Ministro Octavio Gallotti. Hoje a ação, que ainda aguarda desfecho, tem como relatora a Ministra Cármen Lucia. Em razão de interrupções e pedidos de vista, o julgamento da cautelar só foi concluído em 2010 e o mérito, como se sabe, não foi decidido até o momento. O feito constava no calendário de julgamento do dia 18.3.2020.
A decisão da cautelar de 2010 caminhou em sentido diverso das decisões da Primeira Turma de 1998 e 1999. Ficou vencido o relator, Ministro Octavio Gallotti, que pretendia, na linha dos arestos anteriores, fixar a “exegese no sentido de restringir a incidência do ICMS às cópias ou exemplares de programas produzidos em série e comercializados no varejo, sem abranger o licenciamento ou a cessão de uso”. A cautelar requerida foi negada e o Tribunal reconheceu, por maioria, a possibilidade de incidência do imposto (ICMS) sobre operações com software, ainda que realizadas por transferência eletrônica de dados, a despeito da “inexistência de bem corpóreo ou mercadoria em sentido estrito”.
O acórdão, contudo, não pôs termo à controvérsia sobre o tema em questão, tampouco assentou diretrizes claras a respeito do imposto incidente sobre programas de computador. Ainda se espera que o STF defina a tributação aplicável sobre bens digitais para esses e outros casos.
A bem da verdade, os feitos que seriam julgados no dia 18.3.2020 representam apenas uma pequena amostra dos desafios que a economia digital reserva à Administração Tributária e das controvérsias que o STF será chamado a enfrentar. A tecnologia já modificou profundamente a maneira como vivemos, nos comunicamos, trabalhamos, geramos riqueza, consumimos e nos relacionamos. Os impostos, contudo, ainda permanecem praticamente os mesmos no Brasil, despertando perplexidades frequentes para os contribuintes e para os fiscos, que precisam encaixar novos produtos e negócios em estruturas fiscais pensadas para o século passado.ii
Naturalmente, o esforço para enquadrar os novos negócios e novas manifestações de riqueza nas velhas estruturas de tributação estabelecidas nos anos 1960 configura uma permanente fonte de incertezas e insegurança jurídica para o contribuinte, espremido na disputa fiscal que hoje se estabelece. As controvérsias multiplicam-se e acabam fatalmente galgando o STF.
A dificuldade maior está no fato de as premissas em que se baseia o sistema tributário nacional e que lastreiam a divisão de competências, na Constituição, foram estabelecidas ao tempo em que a economia se concentrava na produção e no comércio de bens físicos e a maior parte dos serviços era relegada apenas à prestação em pequena escala e à esfera local. A realidade econômica hoje é outra. Está mudando profunda e rapidamente.
A dicotomia mercadoria-serviço, critério utilizado para a partilha de competências tributárias na Constituição em vigor, não subsiste no contexto da economia digital. Envelheceu, tornou-se obsoleta: insuficiente para lidar com os desafios que se impõem às administrações tributárias. Muitas atividades que pretendemos encaixar à força no conceito de mercadoria ou serviço não são uma coisa nem outra. São algo diverso e inimaginável ao tempo em que as bases constitucionais (e rígidas) dos nossos tributos foram fincadas. Mas decerto essa não é uma premissa que possa ser confortavelmente assumida pelas Fazendas Públicas, sob pena de erodir ainda mais suas bases tributárias e desonerar integralmente muitas atividades econômicas hoje já muito mal tributadas.
De um lado, no Congresso Nacional, caminha o debate legislativo da reforma da tributação do consumo, pela criação de um imposto sobre bens e serviços, capaz de alcançar amplamente mercadorias, serviços, bens intangíveis, cessão e licenciamento de direitos e locações, para lhes conferir tratamento fiscal uniforme, como proposto na PEC 45/2019, na Câmara dos Deputados, e na PEC 110/2019, no Senado Federal. De outro, incertezas fiscais de hoje convertem-se em conflitos de competência, que envolvem Estados, Municípios e talvez a própria União, fazendo com que a disputa inevitavelmente chegue até o STF, depositário das esperanças das Fazendas e também dos contribuintes.
Parece bem claro que o sistema tributário brasileiro envelheceu e não está pronto para enfrentar os desafios que a economia digital impõe. Acumulam-se lacunas, inconsistências e sobreposições. O debate em torno da reforma na tributação do consumo é urgente e inadiável.
Bem ou mal, se não forem revistas as bases constitucionais pelo Congresso Nacional, é o STF que precisará decidir com lastro em premissas fixadas no século passado. Atualizará conceitos, definirá o ente competente e o imposto aplicável. Decidirá a respeito dos impostos cobrados sobre streaming, economia compartilhada, Software as a Service (SaaS), Infrastructure as a Service (IaaS) e tudo mais que vier a surgir no contexto da quarta revolução industrial e da economia digital. Precisará determinar, caso a caso, o imposto e o regime jurídico aplicável para cada novo tipo de bem, mercadoria ou serviço.
No caso dos softwares, essa espera já dura mais de vinte anos. Daí a pergunta que dá título a este artigo e é intencionalmente ambígua. De um lado, vale questionar, afinal, quando o STF vai julgar o caso dos softwares que tramita na Corte desde 1999? De outro, também cabe a pergunta: será mesmo que o Supremo é o espaço mais adequado para decidir o futuro da tributação desses e de outros bens digitais no Brasil?
i A ação pede a declarar a inconstitucionalidade do Decreto no 46.877/15 do Estado de Minas Gerais, bem como a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, mediante a interpretação conforme à Constituição, do art. 5º da Lei n. 6.763/75, do art. 1o, I e II, do Decreto n. 43.080/02, ambos do Estado de Minas Gerais, e do art. 2º da Lei Complementar Federal no 87/96, a fim de excluir das hipóteses de incidência do ICMS as operações com programas de computador – software.
ii Os desafios da economia digital para a tributação no Brasil são o objeto deste artigo publicado em coautoria com os Professores José Roberto Afonso e Luciano F. Fuck: CORREIA NETO, Celso de Barros; RODRIGUES AFONSO, José Roberto; FUCK, Luciano Felício. A Tributação na Era Digital e os Desafios do Sistema Tributário no Brasil. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 15, n. 1, p. 145-167, set. 2019. ISSN 2238-0604. Disponível em: https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/3356.
Celso de Barros Correia Neto é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), consultor legislativo da Câmara dos Deputados, advogado e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público. Foi assessor e chefe de gabinete de ministro do Supremo Tribunal Federal. Autor dos livros O Avesso do Tributo e Os Impostos e o Estado de Direito.
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