Edmar Araujo*
Há poucos dias o hit “Hackearam-me” alcançou a marca de 100 milhões de visualizações no Youtube. Intepretada por Tierry com participação de Marília Mendonça, a canção é mais um sucesso ao que os amantes dos novos ritmos chamam de sofrência.
Numa ida ao supermercado, enquanto a música era reproduzida no som do carro, me flagrei prestando atenção na letra da canção:
“Se acaso de madrugada
Chegar algum ‘volta para mim’
Hackearam-me, hackearam-me
Dizendo ainda te amo
É alguém que sabe que eu te perdi
Hackearam-me, hackearam-me”
Embora o título possa sugerir a estória de uma pessoa que tenha tido seu dispositivo móvel invadido por hackers, o que a canção fala mesmo é de uma prática comum e bastante possível no Brasil que é a negação de autoria em meios digitais.
A pessoa apaixonada e personagem deste enredo está a dizer que enviará mensagens amorosas, mas como não quer admitir que ainda o faça prefere “prever” e informar que será hackeada. Noutras palavras, deseja contestar os próprios atos.
Como é possível provar que alguém seja o autor de determinada mensagem via whatsapp?
Quem garante que nossos posts nas redes sociais foram, de fato, produzidos por nós?
Receber uma ligação de um número que esteja registrado em nossos contatos é a garantia que falaremos com a pessoa que achamos que está do outro lado da linha?
Durante a Covid-19, as fraudes virtuais aumentaram exponencialmente no Brasil. Entre as práticas está a auto-fraude, quando alguém nega ser o autor de determinado ato praticado na internet. Exemplo disso são as compras que as pessoas fazem no cartão de crédito e, ao receberem suas faturas, negam que tenham gastado determinado valor, exigindo das operadoras e bancos a devolução de dinheiro. Trata-se de má-fé do consumidor, mas as empresas de e-commerce não possuem muitos mecanismos para combater a prática. Entre as alegações dos que praticam a auto-fraude está a mesma da canção: “hackearam-me”.
Se não há muitos mecanismos para comprovar identidade e atribuir autoria, o ambiente propício aos estelionatários virtuais está montado, pois dependeremos apenas da nossa confiança pessoal para acreditar que estamos interagindo com quem desejamos nos comunicar.
Sim, é possível que nossos dados tenham vazado nos recentes eventos desta natureza.
Sim, é possível que alguém faça compras utilizando apenas dados de cartão de crédito sem ter que comprovar minimamente a própria identidade.
Sim, é possível fazer uma compra, consumir o serviço ou receber o produto e mesmo assim alegar ao banco, à operadora ou ao e-commerce que você não reconhece a operação.
A solução para este problema está na implementação de política pública de identificação civil digital. Noutras palavras, o documento de identidade de qualquer brasileiro deveria ter sua versão online protegida por senha e criptografia, bem como produzir assinatura eletrônica capaz de tornar o ato realizado na internet análogo aos do mundo físico, como a assinatura de contrato com firmas reconhecidas em cartório.
Já há tecnologia suficiente no Brasil, a legislação que trata do tema está vigente, mas sem execução pelos poderes públicos pois falta vontade política e sobram prejuízos como os R$ 54 bi que o governo pagou a quem não merecia receber o auxílio emergencial, por exemplo.
O que Tierry e o hit “Hackearam-me” nos ensinam sobre a internet?
Que nela eu posso ser quem eu quiser, negar quem eu sou e contestar os meus atos para não ser penalizado por eles.
*Edmar Araujo, presidente executivo da Associação das Autoridades de Registro do Brasil (AARB). MBA em Transformação Digital e Futuro dos Negócios, jornalista. Membro titular do Comitê Gestor da ICP-Brasil
Fonte: Estadão