Autogestão ganha impulso com ferramentas digitais

Acesso a fontes de informação deve dar mais poder ao paciente

Por Maria Alice Rosa | Para o Valor, de São Paulo

O engajamento da população na cadeia da saúde por meio de recursos digitais, estimulando o autocuidado e o fornecimento de dados que ajudem na prevenção e tratamento de doenças, é um desafio mesmo para os países mais avançados em eHealth ­ uso de tecnologia de informação e comunicação no setor. No Brasil, que só agora começa a se desenvolver nesta área, a criação cada vez maior de aplicativos, sites, produtos e serviços inteligentes de uso individual é imprescindível para que possa ocorrer esta inclusão, capaz de eliminar uma série de etapas dos atendimentos convencionais e reduzir a saturação do sistema de saúde brasileiro.

Na indústria global, esta tecnologia direcionada ao indivíduo é denominada “consumerization of healthcare”. “É todo o consumo que as pessoas fazem de serviços ou produtos para a saúde que não necessariamente passam pela cadeia do setor”, explica o mentor do eHealth Mentor Institute (EMI), Guilherme S. Hummel. A integração é considerada fundamental para o avanço da indústria em todo o mundo. Nick Guldemond, professor de Integrated Care and Tech da Erasmus University, da Holanda, explica que os sistemas de saúde público e privado não estão dando conta das demandas da população, que são cada vez maiores em razão, principalmente, do aumento da longevidade. “É preciso repensar todo o desenvolvimento nesta área. No futuro, o papel institucional deverá ser muito menor e a assistência comunitária será bem mais abrangente.” Cada vez mais, será necessário levar às pessoas o conhecimento e as ferramentas necessárias para que elas façam a autogestão da saúde com segurança, antes de precisar recorrer a um médico ou a um hospital, segundo ele.

Hummel afirma que há três vetores primordiais dentro do conceito de “consumerização” que levarão à redução de custeio e ao aumento de qualidade no atendimento: promoção, que é tudo o que gravita em torno do paciente fazendo com que ele se conscientize sobre o autocuidado; prevenção, quando esses recursos são capazes de detectar sinais que ajudam a pessoa a evitar algum problema de saúde; e a predição, a capacidade de identificar uma patologia que não existe, mas para a qual há propensão, seja com base em DNA ou no estilo de vida da pessoa. Grandes companhias se mobilizam em busca da dessa integração tecnológica na cadeia da saúde. Em palestra no Fórum HIMMS@Hospitalar, realizado na feira Hospitalar 2017, o diretor para América Latina da Healthways/Sharecare Company, Nicolas Toth Jr., revelou que a empresa desenvolve uma plataforma onde o usuário “poderá tratar de toda” a sua saúde. “Estamos juntando uma série soluções, desde a captura de dados, a análise das informações e várias outras etapas, até a inserção o usuário final.”

Para se ter uma ideia do tamanho do empreendimento, a Healthways fez 11 aquisições nos últimos seis anos com foco nos módulos necessários para a plataforma, que deverá ser lançada no Brasil até o fim deste ano. “Em nível mundial, é um projeto de mais de meio bilhão de dólares”, diz Toth. A AxisMed Telefónica lançará no final do terceiro trimestre o programa On Life, afirma o CFO da empresa, Bruno Martins do Vale, também palestrante da Hospitalar. “Nós entendemos que, com o avanço da tecnologia e a digitalização do contato, as pessoas deixam pegadas digitais em todos os ambientes em que trafegam. Este potencial de informação deve ser utilizado para construir programas de gerenciamento de saúde e maximizar o retorno para os clientes.” O On Life é destinado a seguradoras, planos de saúde e mercado corporativo.

A participação maior dos indivíduos vai alavancar uma mudança cultural, de comportamento, na área da saúde, avalia o vice­presidente da americana Cognizant & Head Solutions Architecture & Technology, Suresh Ganesan. “As tecnologias sempre estiveram a serviço do médico, mas agora o paciente não estará mais sozinho. Estará conectado a uma sociedade e passará a dispor de mais conhecimento.” O centro deixa de ser o médico, diz Ganesan, e passa para o paciente, que terá outras fontes de informação por meio de seus dispositivos e, além disto, compartilhará dados que ajudarão em pesquisas para seus problemas de saúde, o que servirá para quem está em situação semelhante. “O paciente ganha poder e se torna mais exigente na relação com os médicos e prestadores de serviços, o que força a cadeia toda a se aperfeiçoar.”

Para especialista, Brasil está 30 anos atrasado na área

O potencial de mercado para tecnologias de uso pessoal em saúde no Brasil não se explica apenas pelo fato de o segmento ter comprovado sucesso no exterior, mas também por causa do esgotamento dos sistemas público e privados no país. Para o mentor do eHealth Mentor Institute (EMI), Guilherme S. Hummel, especialista em digital healthcare, com quatro livros publicados sobre o assunto, os brasileiros verão nos próximos anos o surgimento de um volume “monstruoso” dessas tecnologias simplesmente porque não haverá outra saída para regenerar o setor. “Estamos 30 anos atrasados nesta área em relação ao mundo. Paramos no tempo e chegamos ao caos.”

O custo da ineficiência e a superlotação nos atendimentos do Sistema Único de Saúde (SUS), assim como o peso da sinistralidade nas receitas dos agentes privados, tornaram urgente a adoção de recursos que ajudem na prevenção individual, desafoguem o atendimento presencial em casos de menor complexidade e proporcionem um acompanhamento do histórico do paciente, independentemente do local onde ocorra a consulta, para citar alguns exemplos. Segundo Hummel, a média de sinistralidade entre os operadores de saúde suplementar no Brasil está em torno de 85% ­ “é nível de insolvência”, ressalta. Na maioria dos países, o índice fica na faixa 70%.

“Nas últimas décadas, enquanto o mundo levava para a saúde recursos como big data, data analytics, telemedicina, prontuários eletrônicos, videoconsultas, por exemplo, as lideranças dos setores público e privado brasileiro nadavam sem se preocupar com o engajamento do paciente, o que os obrigaria a ser mais eficientes e transparentes. O resultado foi esse caos que vemos hoje.”

Em trabalhos elaborados para o Fórum HIMSS@Hospitalar, Hummel apresenta dados que dão uma ideia do atraso do Brasil em eHealth. Estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS), que iniciou em 2005 um monitoramento do setor em seus 194 Estados membros, entre eles o Brasil, revela que, uma década depois, 58% possuem uma estratégia de eHealth e 90% delas estão alinhadas a políticas de cobertura universal. Em 66% dos países existe uma política nacional de health information system.

Mais de 75% dos países possuem apps de toll­free emergency, com 69% deles oferecendo também serviços de alertas de consulta e 62% com apps para telemedicina. No Brasil, este mercado ainda é chamado de “potencial”, diz o especialista.

Marcas enxergam novos negócios
Por Katia Simões | Para o Valor, de São Paulo

Somar tecnologia a uma gestão de baixo custo e alta eficiência com foco na melhoria de resultados tanto para o paciente quanto para as instituições de saúde. Este foi o fio condutor das mais de 1.200 marcas presentes à Hospitalar 2017. Segundo Mônica Araújo, diretora da mostra, o Brasil responde por 2,7% de tudo o que é gasto com saúde no mundo, apresentando um leque gigantesco de oportunidades de novos negócios tanto na esfera pública quanto privada.

“Ao contrário dos dois últimos anos, quando os hospitais colocaram o pé no freio em razão da recessão econômica, o que pudemos sentir foi uma disposição maior em trazer para dentro de casa as novas tecnologias”, afirma Robson Miguel, diretor de vendas da Pixeon. Com 30 anos de mercado e uma carteira de mais de 2.000 clientes, a empresa apresentou uma nova solução para beira­leito, que permite aos profissionais das mais diversas áreas coletar dados, aferir sinais vitais, checar itens prescritos e pedir exames a partir de smartphones ou tablets.

“O equipamento está em fase final de homologação em Salvador e a meta é que seja adotado em pelo menos 40 hospitais até o final do ano”, diz Miguel. “A expectativa com este lançamento é crescer 3% em marketing share no mercado hospitalar, o equivalente a 80% do volume total de vendas registrado em 2016″. Um desafio que, se alcançado, garantirá ao grupo um faturamento de R$ 100 milhões em 2017.

Também disposto a ganhar uma fatia maior de mercado no Brasil, principal foco de investimento entre os países emergentes, a Sinteco, divisão de negócios da italiana Bucci Automations, decidiu customizar suas soluções para a realidade nacional. Colocou no mercado um sistema de gestão automática de medicamentos em dose unitária. A solução é capaz de agrupar as medicações e identificar a prescrição pelo nome do paciente, em menos de um minuto. “O objetivo é auxiliar as farmácias hospitalares a reduzir custos, algo em torno de 40%; otimizar a logística com cerca de 25% menos gastos; diminuir o tempo de preparo da medicação em 50% e obter total rastreabilidade dos medicamentos”, diz José Renato Marcuci, coordenador de aplicação e vendas.

A solução completa, para um hospital com uma média de 300 leitos, porém, não sai por menos de 700 mil euros. Mas, mesmo diante do alto custo, o executivo está confiante na receptividade do mercado brasileiro, que começa a dar sinais de revitalização. “Diferentemente de 2016, já temos projetos de implantação bem encaminhados”, afirma. O primeiro a adotar o sistema no Brasil foi o Hospital Pilar, de Curitiba. Quem também enxerga um início de mudança no comportamento do mercado de saúde é Emerson Miranda, diretor do APX Group, que há uma década trabalha no desenvolvimento da tecnologia robótica para reabilitação. “O Brasil, segundo dados do IBGE, conta com mais de 1,3 milhão de deficientes físicos motores, que precisam de novas tecnologias para melhorar a mobilidade e a qualidade de vida”, diz o executivo. Com um faturamento médio anual de R$ 2 milhões, a empresa foca as médias e grandes instituições na área de reabilitação, para as quais oferece soluções robóticas que ajudam a diminuir o tempo de internação do paciente, trazendo benefícios para os dois lados. Entre as mais recentes tecnologias lançadas pelo grupo APX está o Motomed Gracile, o único dispositivo de terapia de movimento motorizado projetado especialmente para as necessidades das crianças. Completo, o equipamento custa cerca de R$ 95 mil, mas pode ser adquirido a partir de R$ 60 mil, módulo a módulo.

Pequenas também ganharam espaço. A startup Timpel apresentou o Enlight (tomografia por impedância elétrica), único equipamento no mundo que monitora os pulmões e pode observar com precisão como eles estão funcionando em pacientes na UTI.

Volume de dados desafia pesquisa
Por Ana Luiza Mahlmeister | Para o Valor, de São Paulo

Os dados de saúde vão crescer mais de 50 vezes nos próximos cinco anos e nenhuma empresa será capaz de dar conta de tamanha montanha de informações. Estratégias de interconexão entre as diversas instituições para avançar nas pesquisas médicas levando em conta a segurança do paciente ainda está longe de acontecer. Sistemas clínicos de gestão, prontuários de pacientes e imagens de exames formam diversos repositórios que pouco se integram entre si. Hoje 20% das informações são estruturadas em bancos de dados e 80% não são estruturadas como e­mails, papel, arquivos eletrônicos e imagens, que crescem 36% ao ano. O primeiro passo é criar um repositório de dados que centralize as informações e permitam sua interoperabilidade.

Um sistema de gerenciamento de conteúdo (ECM ­ Enterprise Content Management, na sigla em inglês) é um dos caminhos para dar visibilidade à informação, permitir o arquivamento, compartilhamento e acesso aos dados por sistemas móveis. O sistema captura o dado, processa e define a forma de compartilhamento, com hierarquias de acesso. “Um sistema de imagens médicas, prontuário e informações administrativas financeiras podem ter uma interface comum para que o profissional tenha acesso à informação com um clic”, apontou Paulo Cesar Alves de Lima, diretor comercial da OnBase. É possível ter uma visão única do paciente a partir do número do prontuário acessado pelo celular, incluindo imagens médicas, e fazer a prescrição pelo smartphone.

A computação em nuvem tem despontado como resposta à integração e armazenamento dos dados de saúde. Uma parceria entre a GE Healthcare e o Hospital do Câncer de Barretos, no interior de São Paulo, criou um projeto para diminuir erros em diagnósticos por imagem em mamografias. De acordo com Marcelo Blois, diretor de pesquisa da GE Healthcare, 60% das imagens geradas pelo exame da mama registram algum problema de visualização. O estudo reuniu exames anônimos enviados a um sistema em nuvem, que processou e analisou os dados, detectando erros no posicionamento do aparelho e de cortes na imagem. Isso permitiu informar a forma correta do procedimento e evitar a rechamada da paciente.

Por ser um mercado extremamente regulado, com várias questões sobre a confidencialidade e segurança dos dados, a adoção da internet das coisas ainda levará tempo. Oportunidades não faltam, com dispositivos vestíveis, a exemplo dos atuais relógios que capturam dados sobre batimentos cardíacos. “O que barra o avanço da tecnologia é a falta de padrões físicos e lógicos entre sensores e dispositivos de captação de dados para que a informação circule pelas diversas redes”, afirmou Cileneu Nunes, chief executive officer da Aioti. Um primeiro passo, na visão do executivo, é usar a grande capacidade de processamento do smartphone para enviar informações sobre glicose, estilo de vida e até fazer um eletrocardiograma.

Mundialmente existe uma iniciativa para a integração de dados de saúde chamada Fair, adotada inicialmente na Holanda, Reino Unido, Alemanha, Suécia, Itália, Espanha, Portugal, República Tcheca, Eslovênia, Suíça, Dinamarca, Finlândia, França, EUA e Austrália. Luiz Olavo Bonino, chief technology officer (CTO) da Fair Data, explicou que todos esses países estão trabalhando em um modelo chamado Go Fair, iniciado na Holanda, com apoio próximo da Alemanha e outros países. O objetivo da missão ao Brasil, durante a Hospitalar, foi entrar em contato com organizações brasileiras para iniciar as atividades.

Valor Econômico