Na ponta dos dedos

Por Martha Funke | Para o Valor, de São Paulo

A transformação digital responsável por criar gigantes como Airbnb e Uber no setor de serviços chegou ao mercado financeiro com o mesmo potencial de provocar rupturas em modelos de negócios seculares graças a tecnologias que vão de smartphones a big data, analytics, inteligência artificial, robôs e blockchain. Hoje, bancos, meios de pagamento, seguros, crédito e investimentos estão na palma da mão do cliente sem necessidade de qualquer interação humana. E, mesmo investindo pesadamente em tecnologia, as instituições tradicionais passaram a ser instigadas pelas fintechs, startups de base tecnológica, livres de legados, ágeis e capazes de prestar serviços de nichos a custos reduzidos. O resultado foi a aceleração de inovações, bancarização e oferta de produtos antes restritos a poucos a uma maior parcela da população. Na média dos cinco maiores bancos do país, as operações digitais representam mais de 60% do total ­ excluída a Caixa, são 72% ­ e as transações mobile já passaram à frente da internet em pelo menos dois deles. Do depósito de cheques com base em foto ao atendimento por videoconferência, praticamente qualquer serviço ou processo bancário pode ser realizado pelo cliente por aplicativos de celular. Principalmente depois que os incumbentes aceleraram esforços em design e usabilidade para equiparar seus aplicativos aos criados por instituições como Nubank, Original, Intermedium e Neon, cujas operações, da captação ao atendimento dos clientes, são totalmente digitais. No Banco do Brasil, primeiro tradicional a permitir abertura de conta simplificada pelo smartphone, o financiamento de veículos via aplicativo já responde por mais de 15% dos desembolsos no segmento, com 70% das operações no fim de semana. Pelo celular, a devolução do Imposto de Renda (IR) é antecipada com envio de foto do recibo e o aplicativo Ourocard permite contestação on­line, cartões virtuais e pagamentos sem contato (NFC, na sigla em inglês). A próxima novidade é uma solução de gestão financeira de cartões e contas em visão única, classificação por tipo de gastos e para IR, em testes com público interno, adianta o diretor de negócios digitais, Marco Mastroeni. O Itaú já registra mais de 60 mil contas abertas pelo celular desde setembro e oferece agências digitais, com gerentes remotos em horários estendidos, além de contratação de capital de giro e pagamento de Darf para pessoas jurídicas pelo aplicativo. Segundo o diretor executivo Luca Cavalcanti, o Bradesco vai colocar no ar seu aplicativo de conta digital com lançamento diferenciado, resultado da plataforma Next, marca usada originalmente em espaços conceito em shopping centers e do projeto voltado aos usuários mais jovens com investimentos de R$ 120 milhões para concorrer com as fintechs. A Caixa, no último bimestre de 2016, registrou aumento de 45% no volume de transações mobile. Além de aplicativos segmentados, como FGTS, Bolsa Família, Trabalhador e ID Jovem, criou o Caixa Celular, com gerenciamento de todas as contas do cliente em acesso único, e o app Cartões Caixa, com funções como liberação de uso no exterior e contestação de transações, detalha o diretor de transformação digital Adriano Assis Matias. O Santander Way vai ainda mais longe e permite funções como emissão de cartões virtuais e classificação de compras. O próprio relacionamento com as fintechs também avançou. No cenário mundial, alguns países lidam com elas como concorrentes. Outros, como parceiros e agregadores de qualidade, soluções e ideias. “É como enxergamos”, diz Gustavo Fosse, diretor de tecnologia da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban). Para buscar inovação, as estratégias vão de gerências de TI no exterior a aceleradoras de startups. O Banco do Brasil tem presença em Londres, Nova York, Tóquio e Vale do Silício, para onde leva equipes para desenvolvimento de projetos em contato com startups locais. O Santander adquiriu a fintech de cartões digitais pré­pagos ContaSuper. O Bradesco, além de co­criação com influenciadores, criou o programa InnovaBra para selecionar fintechs alinhadas à sua estratégia. Na primeira edição, o foco foram APIs, plataformas digitais, gameficação e dispositivos vestíveis. Na segunda, customização massificada, blockchain e robôs. Outra iniciativa foi o fundo de corporate venture com capital inicial de R$ 100 milhões. O Itaú criou o centro de empreendedorismo tecnológico Cubo e já colocou em testes desde soluções com robôs de voz até aplicações para renegociação de dívidas on­line, compartilhamento de cookies e visualização de dados. A Caixa, com apoio do Fundo Socioambiental e parceria com Artemísia, vai selecionar até 15 startups em seu Desafio de Negócios de Impacto Social. Como o relacionamento com este novo universo demanda ajustes tecnológicos, as instituições começam a adequar seus ambientes para permitir acessos a desenvolvedores externos. Banco do Brasil e Bradesco, por exemplo, já investem forte em conectores (APIs). Bancos médios fazem o mesmo. “Com menor escala, sua necessidade de plataformas com APIs para inovação por integração às fintechs é maior”, diz André Leme, da Bain Brasil. Big data, analitycs, algoritmos, robôs e inteligência artificial colaboram para o processo digital de ponta a ponta e reduzem espaços entre estratégias multicanais e omnichannel, com maior integração entre canais e ofertas mais personalizadas com base em CRM. Com processamento de 3 bilhões de transações semanais, o Itaú definiu 100 mil grupos de clientes e aumentou em 40% a assertividade das ofertas comerciais, diz a diretora de canais digitais Lívia Chanes. A assistente virtual AVI alcança 97% de acertos no atendimento de cartões. O Bradesco usa algoritmos, big data e inteligência artificial, com tecnologia Watson da IBM no suporte a agências por chat com precisão de 90% e uso de mais de 24 mil perguntas diárias. O movimento, claro, vai além da interface com os clientes, com automatização de processos de apoio. “No futuro próximo, veremos grandes investimentos em transformação do back office e na revisão de sistemas centrais”, afirma Paschoal Baptista, da Deloitte. O blockchain, que garante a segurança das operações com moedas digitais e funciona por uma cadeia de blocos criptografados, pode apoiar a redução de custos no back office com menor necessidade de infraestrutura. Cai como uma luva para soluções como transferências internacionais de fundos, mas aplicações deste tipo só devem ocorrer em médio prazo. Além de performance limitada em grandes volumes, a possibilidade de mudança de status quo no mercado, apoiado em organizações centralizadoras de registros, só deve ocorrer em médio prazo, diz Luiz Ruivo, da PwC. A saída de marcas como Goldman Sachs e Santander do consórcio mundial R3, do qual participam os brasileiros Itaú, Bradesco e BMFBovespa, mostra a falta de consenso em torno do assunto. A Febraban montou um grupo de trabalho para estudar o tema, enquanto pilotos e provas de conceitos já rodam por aqui e aplicações comerciais devem chegar ao ar neste semestre.

 O Bradesco, em 2016, anunciou testes suportados por blockchain de carteira digital, com a startup eWally, e de remessas internacionais, com a BitOne. O BB tem piloto com bloqueio de endereços de IP inseridos em lista negra. O Santander testa solução de transferências entre funcionários no Reino Unido e fez projeto com a Microsoft para gestão de garantias em aquisição de empresas, diz o diretor da plataforma multicanal, Cassius Schymura. “Vamos ver implementações práticas em 2017″, afirma Guilherme Horn, da Accenture.

Digitalização impulsiona acesso a produtos financeiros

A simplificação no acesso e a redução de custo decorrentes da digitalização dos serviços financeiros impulsiona não só a bancarização como definida pelo Banco Central, com base no acesso a contas­correntes. Também coloca à disposição de um grupo maior de consumidores produtos financeiros antes acessíveis apenas a clientes de maior renda. Pesquisa da Febraban apresentada no ano passado indica que a bancarização atingiu 89,6% em 2015, comparada a 87% no ano anterior. Novatas digitais de olho nas camadas não atendidas tendem a acelerar o processo, já que o custo de serviço de um banco digital chega a um terço do custo de um tradicional, dando margem a absorção de clientes com menor rentabilidade, diz Guilherme Horn, da Accenture. Segundo Rodrigo Dantas, da EY, a discussão sobre bancarização gerou um modelo de conta com tarifas mais leves e serviços limitados, como a IConta do Itaú e a Digiconta do Bradesco, só com transações eletrônicas, mas o efeito foi tímido. O surgimento das fintechs, sem os pesados custos das organizações tradicionais, abriu possibilidades de rentabilização mesmo com serviços mais acessíveis. Ainda assim, boa parte atua com o público já bancarizado, embora com modelos prontos para outros grupos. O Nubank é um exemplo. Seu estilo de concessão de crédito é conhecido como enjaulamento, no jargão do setor ­ a oferta de uma linha tímida ampliada ao longo do tempo e do bom comportamento do cliente. O modelo está pronto para o mercado não bancarizado. “A questão é se precisa entrar neste segmento, já que há oportunidades mais rentáveis”, diz Dantas. Boa parte das oportunidades está nas mãos não só do cliente desbancarizado, que não consegue ter conta­corrente e é alvo de iniciativas como as carteiras digitais pré­pagas, mas do sub bancarizado, cuja renda não é suficiente para acesso a produtos como cheque especial ou investimentos. “Muitas fintechs focam este mercado”, diz Luis Ruivo, da PwC. É para o primeiro grupo que se voltam iniciativas como a carteira digital pré­ paga ContaSuper, que alcançou 360 mil clientes em meados do ano passado e, em agosto, passou a ser oferecida também nas agências do Santander como diferencial para atrair novos clientes. Já o segmento de menor acesso a produtos mais sofisticados entrou na mira de serviços financeiros como gestão de investimentos apoiada por robôs, acessível mesmo a investidores com pouco capital. “A redução de custos pela digitalização já impacta serviços como seguros, investimentos e cartões de crédito, ao mesmo tempo em que aumenta a satisfação do usuário”, registra André Leme, da Bain. No banco Original, um dos primeiros a oferecer abertura de conta por celular, o pacote de tarifas mínimo sai por R$ 24,90. O modelo apoiado em plataforma 100% digital atraiu 100 mil correntistas em seis meses. A expectativa era ter este número em um ano, diz o vice­presidente Marcelo Santos. Já o Itaú, além da criação do aplicativo Abre Contas em setembro, que já rendeu 60 mil novas contas­correntes, acaba de colocar no ar o aplicativo ItauLigth, para clientes de baixa renda e que deve ganhar a mídia de massa a partir do mês que vem. A interface do app é simplificada e o aplicativo tem 30% do tamanho do aplicativo normal (2 MB), diz a diretora de canais digitais Lívia Chanes. “A atuação é mais com a exclusão digital, com foco em quem não precisa de um banco com todos os produtos e serviços, mas quer consultar extrato, pagar uma conta ou fazer transferência.” O atendimento com qualidade de clientes cujos resultados antes não compensavam também depende da reação da economia ao longo do tempo, avalia Paschoal Baptista, da Deloitte. “Cooperativas de crédito e bancos regionais estão atuando no processo de bancarização”, diz. O recém­lançado SD Bank é um exemplo. Além de carteira digital pré­paga para acesso de desbancarizados a serviços financeiros essenciais, criou boletos digitais para vendedores e o SD Cheque, pagamento pré­datado digital entre contas da marca. Em um segundo momento, estão previstos serviços de concessão digital de crédito, caso seja confirmada parceria ou joint­venture com o cooperativo Bancoob. “Temos sinergia de objetivos”, diz o CEO Adriano Miguel da Silveira.

 Valor Econômico